Toma um gole caprichado e abandona o copo sobre a mesa.
Whisky sempre lhe ajuda a acalmar os ânimos. Precisava escrever alguma coisa, qualquer coisa; tinha um prazo a cumprir. Olhou novamente para a caneta, depois para o papel em branco; mais uma vez para a caneta, para o papel, na tentativa de que lhe brotasse repentinamente as palavras, que por sinal, já deveriam estar arrumadas ali.
No rádio, um disco tocava Janis Joplin que, com toda sua melancolia e numa voz deslumbrante, lamentava o fato de ser tão só mesmo cercada por milhões. Também era só naquele apartamento enorme onde sozinho mora; mas não arriscava cantar sobre sua solidão. Preferira ser escritor, contador de histórias ou seja lá o termo que esteja agora na moda. Criava seus personagens de acordo com seus anseios e com a ideia do que poderia ter sido se esse não fosse seu ofício. Vestia-se com o personagem e durante um romance, uma poesia ou um conto, era dele a forma, o desejo, a vida, os amores. Foi marinheiro, ministro, jardineiro, político, lutador, bandido...
Voltando a olhar a folha de papel, ainda em branco, indignou-se por se mostrar hoje, em plena sexta-feira, impotente, diante de uma mesinha simplória de escritório, uma miserável caneta com tinta ao meio e bocal mordido e o papel já amassado de tantas tentativas em iniciar um parágrafo que fosse. Caía a noite e já, já começaria sua maratona de boemias junto com seus companheiros de copos, botequins e amores repentinos. "Anda, vem cá logo de uma vez, D. Inspiração. Adianta, folgada, que já são 18:30". Mas sabe que não vai ser atendido. Sabe que a Dona aí solicitada gosta de fazer manhas e charminhos. É exibida: aparece na hora que bem entender e lhe der na telha; às vezes em situações um tanto quanto estranhas. Mas é melhor evitar entrar em riquezas de detalhes. Sejamos discretos.
Decidiu falar sobre a loucura. Até pensou em usar a definição de um amigo seu, também escritor, para ter mais credibilidade e soar poético, já que o tema pertence à seção de "temas delicados". "A loucura 'é o vácuo entre a criação e a obra criada'". Porém, ao rabiscá-la no papel, notou estático tal afirmação. Muitos irão discordar, sabe disso. Mesmo que não tenham opinião alguma, irão discordar. Porque nunca nada é coerente bastante para alguém; por mais que um aprove, há sempre aqueles que estarão prontos para se obstinarem. Discordam porque querem parecer mais sabidos e só por isso. Aposta uma rodada no bar do Chico. Há sempre a necessidade, o desejo de contrariar gratuitamente. Discordam porque seria chato se concordassem com tudo. Tem que dizer que tem motivo? Não precisa, pois nem os próprios sabem o por quê. Discordar deve estar na moda, ah se deve estar!
E interrompeu o pensamento com o soar da campainha. Eram seus fiéis escudeiros de farras e noites perdidas que vieram em seu resgate; vieram lhe tirar desse engasgo diante da folha de papel. Pegou a carteira o casaco e se pôs a sair, olhando uma última vez os rabiscos. Ah, chega! Iria é beber, rir, cantarolar, esquecer, lembrar, que tudo isso parecia-lhe bem melhor; e quem sabe, tropeçar em alguma situação viva que merecesse se imortalizar com uma caneta mordida e palavras ajeitadas numa folha em branco. Mas não quer pensar nisso; quer agora uma dose dupla do melhor
whisky, um samba e, por que não, mais um amor de bar? Afinal, hoje é sexta-feira.
3 Por aqui, um pouco mais de "etc.":
todos nós nos vestimos de algum personagem vez por outra, essa é uma grande verdade; e eu seguirei a risca o 'conselho' da sua primeira linha, só acho que não vou ficar somente em um mísero gole! Afinal hoje é sexta! Bjo, saudações musicais...
APS
Nana,
Dona Inspiração é exatamente assim, cheia de caprichos e vontades.
Fiquei em uma única dose de tequila, nesse fds, porque queria mesmo era me esbaldar no quentão...e fiz! \o/
Uma linda semana pra ti, moça do liquidificador.
Beijos, dois.
ℓυηα
Que combinção. Whisky e Janis.
Sabe pq não rola um amor de bar mesmo sendo sexta? Porque whisky é a bebida dos solitários.
^^
Postar um comentário